Para a psicanálise de orientação lacaniana, as raças são efeitos de discurso, pois não existem provas científicas de que os grupos humanos diferem, geneticamente, em suas características mentais inatas em raças.
Enfim, não há raças, mas um imaginário designado como racismo no que concerne à fratura do íntimo/êxtimo e à intolerância experimentada como o ódio e o insuportável, diante do gozo do Outro, cuja saída é aniquilá-lo, sob o viés da segregação (CAMPOS, 2018).
Pode-se facilmente, neste ponto, deduzir o princípio básico do racismo: se o Outro não goza da mesma maneira, o Outro deve ser repelido e rechaçado (SANTIAGO, 2018).
Em Extimidade, na aula intitulada Racismo, Miller (2010) formula que essa agressividade, esse ódio, aponta que há algo de real (Outro gozo) no Outro. E isso leva Miller à questão: o que faz com que esse Outro seja Outro para que ele possa ser odiado em seu ser? Mais à frente, ele mesmo responde: o Outro é Outro dentro de mim mesmo. A raiz do racismo, continua Miller, é o ódio ao próprio gozo, uma vez que o Outro está no meu interior em posição de extimidade.
“[…] está em causa (no ódio) na medida em que é êxtimo. O sujeito não pode reconhecê-lo senão localizando-o no Outro. Fonte de ódio, o que é o mais íntimo do sujeito também lhe é exterior” (CUNHA, 2019).
Aqui chegamos à profecia de Lacan, quanto à escalada do racismo. Pois, paradoxalmente, na era das reivindicações de direito ao gozo, vemos os sujeitos não suportando esse mesmo gozo reivindicado quando manifestado no Gozo do Outro. Vivido e experimentado como Outro Gozo, um gozo inassimilável. E que, portanto, deve ser rejeitado, aniquilado.
Cito Lacan:
“No descaminho de nosso gozo só há o Outro para situá-lo, mas é na medida em que dele estamos separados. Daí as fantasias inéditas quando não nos metíamos nisso.
Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o nosso, não o considerando como um subdesenvolvido.”
Quanto aos negros, que antes permaneciam calados ou em seus guetos, com o advento das redes sociais e não suportando mais calar diante da mortificação de seus corpos e subjetividades, começam a reivindicar e conquistar seu espaço. Falar abertamente de seus modos de gozo e de ser no mundo. Não escondem mais sua religião, seus gostos, dissabores, violências vividas. Dores e alegrias de ser quem é escancaradas…
E aquilo que deveria permanecer secreto e oculto, insiste em vir à luz! O estranho gozo do próximo causa horror e quanto mais se manifesta, maior a resistência no sentido contrário.
Agora, para estar à altura da subjetividade de sua época, a psicanálise terá que tomar partido. E não tratar do racismo em algumas pinceladas e em poucos parágrafos aqui e acolá.
E hoje, é esse ponto de basta e de posicionamento que me causa o desejo de escrever.
No último ano, participei de dois encontros marcantes! O XI Fórum Mineiro de Psicanálise – “O sujeito na massa de eus” e o 24º Encontro Brasileiro de Psicanálise do Campo Freudiano – “Analista: presente!”
Foram marcantes porque trouxeram à luz as questões sobre raça, racismo e a posição do analista frente a isso. E o que presenciei e experimentei foi o desconforto e o embaraço diante dessa temática.
Em especial, o que mais me marcou foi a mesa ACONTECIMENTOS POLÍTICOS DE CORPO: O ANALISTA E A SEGREGAÇÃO, com Marcus André Vieira e Helenice de Castro. E o debate que se seguiu.
Entre os embaraços e desconfortos, assistimos aos analistas debaterem sobre as marcas que a cor deixa na subjetividade. E a pergunta que persistia era: o inconsciente (real) tem cor?
O debate foi caloroso, mas, era nítido, a partir das falas, quem já havia conseguido ir além e quem ainda reproduzia um discurso psicanalítico antigo.
Foram Marcus André Vieira e Marcelo Veras que conseguiram fazer um giro e sair desse instante de ver em direção ao momento de concluir que apontava para o tempo de compreender: essa conversa não poderia ser somente entre analistas brancos. Sobre isso saberemos a partir da escuta de cientistas, filósofos, e principalmente de analistas e analisantes negros.
É tempo de se deixar interrogar, para então construir um saber…
Qual a postura ética agora? Não recuar!
Não recuar frente ao racismo e se colocar na posição de aprendiz e assim, estar à altura da subjetividade de nossa época.