Quem nunca viu uma criança assistir ao mesmo desenho por umas 30 vezes? Ou brincou com o mesmo bonequinho do mesmo jeitinho umas 20 vezes? Não é à toa que as crianças repetem o que fazem. A repetição guarda um trabalho psíquico por meio do qual elaboramos sentimentos, pensamentos, afetos. Elaborar é tornar algo que, de alguma forma, se faz difícil psiquicamente, em outra coisa que seja mais aceitável. Freud dá um exemplo muito conhecido disso: o Fort! Da!. Essa é uma expressão que o neto dele usava ao jogar o seu carretel para longe e o trazer de volta. Não por coincidência, seu neto enunciava as sílabas do alemão fort e dart que significam longe e perto enquanto o objeto ia para longe e voltava para perto de sua mão. Essa brincadeira ajudava o menino a passar pela ausência da mãe que lhe era imposta e ele não poderia fazer nada diante disso, pois ela tinha mesmo que trabalhar. Notem, que o garoto brincava com um carretel, um brinquedo que geralmente se faz rolar, mas é controlado pela criança, pois tem uma linha que liga o objeto à mão da criança. Aspecto importante este, pois a repetição na brinca traz a dimensão do domínio, isto é, a criança encena algo que até então não está sob seu controle, de modo que na brincadeira, ela deixa de ser passiva e passa a ser ativa. A mesma lógica ocorre, por exemplo, quando a criança chega da escola e vai brincar de aulinha, fingindo ser a professora; ou quando assiste a mesma cena do Rei Leão, vendo Mufasa se afastar de Simba reiteradamente.
Para além do estatuto de operação psíquica que a repetição tem, a repetição na prática também é muito importante! É crucial que se entenda que a criança, na maior parte das vezes, não vai acatar uma ordem necessária na primeira tentativa. Ou, ainda que aconteça, depois ela pode acabar fazendo diferente de novo. Como a psicanalista Maria Cristina Kupfer disse em um congresso, é preciso repetir o mandamento à criança de escovar os dentes até que não se faça mais necessário repetir, até que ela entenda, por ela mesmo, e dê um significado próprio a sua higiene.
Além disso, as crianças vão construindo suas referências baseadas nas orientações que chegam até elas paulatinamente. O que se repete vai ganhando espaço, vai se fazendo como uma inscrição psíquica para a criança. E parece que as crianças estão cada vez mais carentes de referências consistentes, visto que hoje, na era do Google, para cada pergunta que uma criança faz, encontra-se uns dez mil resultados. Mas esses resultados que são, muitas vezes, alçados ao estatuto de uma resposta para a criança, não são tão sólidos. Eles vêm de um outro, um especialista, alguém do outro lado da tela, que nem sequer já viu a criança. A criança precisa de gente presente, não só presente no sentido de estar ali na mesma hora e lugar, mas no sentido de quem cuida dela precisa comparecer com seu desejo por aquela criança.
No entanto, os adultos hoje esperam resultados imediatos, não costumam ter paciência com aquilo que precisa de persistência. Funcionam na base do comando breve e ligeiro, objetivo. As crianças vivem outro ritmo. E como é importante que o vivam. Porém, demarca Denise Vicent, em sua carta aos brasileiros, demarca: “Com o clima atual, que é cada vez mais marcado pelo pessimismo e pela angústia, pode-se dizer que o sentimento de segurança passa necessariamente pelas diretivas dos adultos, facilmente decifráveis, pacientemente repetidas” e por um retorno a alguma orientação que lhe seja firme.
Bibliografia:
Freud, S. (1996). Além do princípio de prazer (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Imago. (Originalmente publicado em 1920).
Vincent, D. (2003). A infância na modernidade. Carta aos brasileiros. In A. M. Meira (Org.) Novos Sintomas. Ágalma.