“Eu tenho nome. E quem não tem? Sem documento eu não sou ninguém! Eu sou Maria! Eu sou João! Com certidão de nascimentoooo… sou cidadão!”
Quem aí leu cantando?
Essa propaganda foi muito veiculada em 2008, mais ou menos, como uma chamada à importância do registro civil para que uma pessoa tenha acesso aos seus direitos e possa ser considerada um “cidadão”.
A música é linda, engraçadinha, grudou na cabeça de muita gente, mas pede um olhar um tanto quanto crítico, pois, como assim: “sem documento eu não sou ninguém?”.
Tendemos a pensar que para sermos cidadãos dependemos da autorização de alguma instituição pública, que nos dê algum documento conferindo o rótulo. Uma espécie de “diploma de cidadão”, como o Cartório Eleitoral, emitindo Títulos de Eleitor, ou o próprio Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, emitindo as Certidões de Nascimento.
Certamente, são documentos importantes e que se relacionam sim com a ideia de cidadania, porém a simples posse deles não esgota todas as nuances desse instituto tão importante.
Então, vamos lá pensar sobre isso com uma provocação relacionada exatamente às Certidões de Nascimento e à construção da nossa identidade: e se eu quiser mudar de nome? E quando o cartório se recusa a registrar o nome que os pais querem, sob o argumento de que tal nome é ofensivo, vexatório, ou “difícil” demais de escrever?
No caso de pessoas transexuais, como fica a solidez desse documento frente à individualidade do sujeito? Ou seja, e quando há conflito entre o que a instituição diz e o que o sujeito quer (ou deseja, para os mais psicanalíticos), o que fazer? Onde fica a cidadania? Perdeu-se?
A inquietação que quero trazer a vocês é que o peso de uma instituição ou a chancela de um ente público em algum aspecto das nossas vivências não significa obrigatoriamente profundidade da nossa postura cidadã.
Na verdade, por vivermos em uma democracia, na qual é fundamental valorizarmos o poder do povo, os atos que os entes estatais praticam só carregarão legitimidade caso sejam produzidos também pelas mãos dos sujeitos que serão afetados por eles, sujeitos esses que, com ou sem chancela de uma instituição, já são cidadãos.
As pessoas que lutaram para conquistar a maior facilidade de alteração do registro civil fizeram isso exercendo a cidadania em oposição a uma postura estatal que dificultava tal modificação. Lutaram em alto e bom tom contra a fragilidade de um pedaço de papel que não refletia suas subjetividades.
Vocês conseguem perceber que, por essa lógica, a importância dos agentes e órgãos públicos na chancela da cidadania sai de um lugar de pedestal?
Mas o que isso tem a ver com processo? Por questões culturais, só entendemos o processo como aquele monte de papeis juntados numa pasta bege horrível que os advogados carregam debaixo do braço pelos escritórios e fóruns. O processo é visto como um negócio que tem que acontecer lá no fórum quando temos problemas mais graves pra resolver. E por serem mais graves, precisam de uma autoridade de “capa preta” pra interferir na nossa existência, através de um documento superpoderoso chamado “sem-ten-ça”.
Porém, processo meeeesmo, tem muito pouco a ver (ou nada, na verdade) com aquele bolo de papel, mas sim com a postura do sujeito no seu exercício da cidadania. Não é um processo-objeto, é um processo discursivo, de linguagem, de elaboração da própria realidade frente às instituições públicas, em um lugar não de submissão às autoridades, mas de cooperação entre cidadão e estado.
Os produtos dessa colaboração, que materializamos em forma de documentos (certidões, atestados, títulos e até mesmo sentenças), são de autoria de todos os sujeitos da sociedade, em pé de igualdade, não de inferioridade e superioridade.
Enquanto escrevo este texto, não consigo precisar como essas informações chagam a vocês… se com algum grau de surpresa, ou de “já sabia”. Porém, é importante colocar que não se trata de um raciocínio tão aceitável assim.
Ainda hoje, mesmo enchendo a boca para falarmos de “Estado Democrático de Direito”, somos muito apegados às autoridades estatais (juízes, promotores etc.), como se eles tivessem algum superpoder que nós, reles mortais, não alcançamos, e não é fácil enfrentar tais sujeitos sem uma fundamentação muito robusta frente aos posicionamentos deles.
Basta observarmos os processos históricos e de conquistas de direitos para entendermos como é delicado e custoso sustentarmos nossa subjetividade frente às instituições (conquista do voto feminino, consolidação do divórcio etc.), além de sempre estarmos à beira do desenvolvimento de situações autoritárias, totalmente contrárias a uma discursividade plural e democrática. Tudo isso é falar sobre PROCESSO!
Esse assunto tem muitas outras camadas e uma possibilidade de aprofundamento gigante. No segmento acadêmico, a Escola Mineira de Processo, formada por estudiosos da Puc Minas e UFMG, é uma das que mais se dedica ao assunto e seus desdobramento, com uma profundidade muito rica. Vale a pena conhecer!
Uma das minhas discussões favoritas é sobre os processos coletivos, nos quais os desafiam aumentam, frente à necessidade de conjugarmos individualidade de coletividade.
Finalizo este texto deixando o convite para que cada um de vocês passe a enxergar o processo e a cidadania com um pouco mais postura crítica e com a curiosidade aguçada por conhecer mais sobre esse assunto.
Um abraço, Priscila.